O Paradoxo Das Patentes No Brasil E Suas Implicações Para O Acesso A Medicamentos 22/05/2018 by Intellectual Property Watch 2 Comments Share this:Click to share on Twitter (Opens in new window)Click to share on LinkedIn (Opens in new window)Click to share on Facebook (Opens in new window)Click to email this to a friend (Opens in new window)Click to print (Opens in new window) The views expressed in this article are solely those of the authors and are not associated with Intellectual Property Watch. IP-Watch expressly disclaims and refuses any responsibility or liability for the content, style or form of any posts made to this forum, which remain solely the responsibility of their authors. Por Marcela Fogaça Vieira e Gabriela Costa Chaves [Note: the English language version of this article is available here.] Introdução[1] O sistema de patentes foi supostamente projetado para permitir a recuperação do investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de um novo produto, através da venda sob exclusividade por um período de tempo. Vários estudos relacionaram preços altos de medicamentos à situação de monopólio estabelecida pelo sistema de patentes e outros direitos de monopólio (como a exclusividade de dados). É bastante estabelecido que a existência de uma patente pode levar a preços altos devido à condição de mercado em que um produtor pode operar com exclusividade. Vários estudos relacionaram preços elevados de medicamentos à situação de monopólio estabelecida pelo sistema de patentes e outros direitos de monopólio (como a exclusividade de dados). Na ausência de concorrência, um produtor pode cobrar praticamente qualquer preço pelo seu produto. A concorrência, portanto, pode promover uma redução significativa de preços e aumentar o acesso. Brazil Ministry of Health O Brasil é frequentemente apontado como um dos países em que menos patentes farmacêuticas são concedidas. Por exemplo, uma pesquisa conduzida por Carlos Correa em 2013 mostra que, no Brasil, foram concedidas 278 patentes entre 2003 e 2008, enquanto na Argentina 951 patentes farmacêuticas foram concedidas entre 2000 e 2007; na Índia 2.347 de 2005-2008; e na África do Sul, 2.442 patentes foram registradas somente em 2008. O fato de haver um número baixo de patentes farmacêuticas concedidas no país poderia levar à conclusão de que medicamentos podem ser comprados sob regime de concorrência (lembrando que o Brasil não concede exclusividade de dados para medicamentos de uso humano) e que os preços são baixos. No entanto, muitos medicamentos no Brasil são comprados exclusivamente de um único produtor e geralmente a preços elevados. Nos últimos anos, houve um aumento significativo nos gastos públicos com medicamentos. Um estudo mostra que enquanto os gastos do Ministério da Saúde com medicamentos aumentaram 74% de 2008 para 2015 (de R$8,5 bilhões para R$14,8 bilhões), o orçamento federal de saúde só aumentou 36,6% no mesmo período. Embora, por um lado, o aumento dos gastos públicos com medicamentos possa refletir um aumento no número de indivíduos em tratamento, por outro lado, também pode significar um aumento nos gastos com medicamentos de alto custo, muitos dos quais estão em situações de monopólio devido ao sistema de patentes. Na ausência de patentes concedidas para produtos farmacêuticos, quais são os fatores que levam à ausência de concorrência e preços elevados no Brasil? A situação de poucas patentes concedidas, mas muitas compras sob regime de exclusividade devido à ausência de concorrência (que pode levar a preços mais altos), chamamos de “paradoxo das patentes no Brasil”. Estudando o Paradoxo das Patentes Esta é a questão que nós, no accessibsa: Inovação e Acesso a Medicamentos na Índia, Brasil e África do Sul, pretendemos responder com um estudo em andamento no Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (NAF) da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – ENSP/ Fiocruz. O objetivo do estudo é realizar uma coleta de dados abrangente e análise das compras de medicamentos pelo Ministério da Saúde (MS) de 2005 a 2016. Os medicamentos incluídos no escopo do estudo são aqueles que tiveram apenas um fornecedor no mercado brasileiro no ano de 2016. Analisaremos o tipo de licitação utilizado para cada compra, o número de produtores com registro sanitário no país e o status patentário de cada produto e, por fim, compararemos os preços brasileiros com os preços no mercado internacional para examinar como o paradoxo das patentes opera no Brasil e suas implicações para a compra de medicamentos pelo sistema público de saúde brasileiro – Sistema Único de Saúde (SUS). Nosso objetivo é utilizar os resultados para melhor compreender as compras de medicamentos pelo SUS e as implicações relacionadas ao sistema de patentes, mesmo na ausência de patentes concedidas no país. Também pretendemos explorar soluções que possam ser utilizadas por gestores públicos, especialmente na compra de medicamentos, a fim de minimizar o impacto do paradoxo das patentes no Brasil. Espera-se que os resultados finais sejam publicados em meados de 2018. Compra Pública de Medicamentos sob o Paradoxo das Patentes Existem muitos fatores que podem levar à existência de apenas um fornecedor de um produto farmacêutico em um determinado país. Um dos principais fatores está relacionado à dinâmica do sistema de patentes. Mesmo na ausência de patentes concedidas, o sistema de patentes pode criar monopólio de facto, ou seja, a situação em que não há patente concedida no país para um determinado produto, mas o mesmo está “sujeito à proteção patentária” devido a um pedido de patente pendente de exame. Essa situação gera “incerteza jurídica” em torno do status patentário de um medicamento devido à existência de pedidos pendentes e à possibilidade de ter que pagar indenização no caso da patente ser concedida no futuro. Essa dinâmica do sistema de patentes não é específica ao Brasil, mas sim uma realidade de como as empresas farmacêuticas operam para maximizar a exclusividade em relação aos seus produtos, através da chamada “gestão do ciclo de vida” pelas empresas farmacêuticas ou “evergreening” por seus críticos. Essa situação aumenta o número total de pedidos de patentes a serem analisados pelos escritórios de patentes e aumenta a incerteza jurídica em torno da patenteabilidade de um medicamento. A situação é agravada no contexto brasileiro devido ao tempo médio muito alto entre o depósito de um pedido de patente e seu exame. Dados recentes da OMPI mostram que o Brasil é o país com maior tempo de pendência média (95,4 meses). Esta dinâmica do sistema de patentes cria uma situação que interfere com a compra de medicamentos e produtos de saúde no Brasil, ou seja, existem produtos sujeitos a proteção patentária por vários pedidos de patentes com diferentes status em um determinado momento, tais como concedidos, rejeitados, pendentes ou abandonados/retirados. Na ausência de patentes concedidas, os pedidos que ainda estão em espera de exame (“pedidos de patente pendentes”) podem gerar incerteza jurídica em relação ao status patentário de um produto, dificultando a concorrência. Na questão ora abordada, isso significa que, durante o período de pendência, as compras de medicamentos pelo setor público são feitas sem licitação e exclusivamente de um fornecedor (monopólio) mesmo na ausência de uma patente concedida ou de outros direitos de monopólio. A falta de concorrência pode resultar em preços elevados. Mesmo que legalmente possa haver produção ou importação de uma versão genérica do medicamento durante o período de pendência, os pedidos de patente pendentes podem ser usados para produzir uma situação de monopólio para um medicamento do lado da oferta. Isto apesar de versões genéricas estarem disponíveis no mercado internacional. Os pedidos pendentes podem ser utilizados por empresas farmacêuticas para criar pressão contra a aquisição ou a produção local de versões genéricas, especialmente no caso de compras pelo setor público. Como o paradoxo funciona na prática Os dados da área de HIV/AIDS e Hepatite C podem ser usados para ilustrar o paradoxo das patentes no Brasil. Em 2015, dos 19 ARVs utilizados no Brasil, 13 foram comprados exclusivamente de um produtor. Desses 13, dados preliminares mostram que apenas 2 possuem uma patente primária concedida no país; 7 têm apenas patentes secundárias concedidas e os outros 4 possuem apenas pedidos de patente pendentes, 2 dos quais são apenas pedidos de patentes secundárias. Dos 3 novos antivirais ativos diretos (DAAs) utilizados no tratamento da hepatite C, todos os 3 estão sendo comprados em exclusividade, apesar de não terem nenhuma patente concedida no país, mas muitos pedidos pendentes. Os estudos de caso apresentados abaixo revelam diferentes efeitos da incerteza jurídica criada por pedidos de patentes pendentes na compra pública e produção local de medicamentos no Brasil. Estes casos exemplificam um cenário mais amplo que pretendemos investigar por completo. – Tenofovir – sem patente, muitos anos de monopólio de facto e preços elevados O antirretroviral (ARV) tenofovir disoproxil fumarate (TDF) foi incorporado ao SUS em 2003. Foi comercializado, com exclusividade, pela empresa americana Gilead até 2010, quando uma versão genérica brasileira começou a ser fornecida ao governo. A primeira versão genérica do TDF estava disponível no mercado internacional em 2006. O primeiro pedido de patente relacionado ao TDF no Brasil foi apresentado pela Gilead em 1998 para o sal fumarato do pró-fármaco (PI9811045-4), um pedido de patente secundário que não cobria o composto base. Em 2005 e 2006, o laboratório público Farmanguinhos/Fiocruz e organizações da sociedade civil ligadas ao Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) apresentaram oposições desafiando a patenteabilidade do TDF no Brasil. Em 2008/2009, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) emitiu a sua primeira e, mais tarde, a sua decisão final (após recurso administrativo) rejeitando a patente. A primeira versão genérica do medicamento estava disponível no país em 2010, sendo produzida localmente por um laboratório público. Durante o tempo em que houve “incerteza jurídica” no status de patente do TDF no Brasil devido a pedidos de patentes pendentes (mesmo que se tratasse de uma “patente secundária”), a Gilead gozou de um monopólio de facto em compras públicas. A Gilead também busca outras estratégias de evergreening em torno do tenofovir, tal como apresentar um novo pedido de patente para uma combinação de dose fixa (FDC) abrangendo o TDF + emtricitabina (truvada®). O pedido foi apresentado pela Gilead em 2004 e foi recentemente rejeitado pelo INPI em janeiro de 2017, após oposições de patente apresentadas pelo GTPI em 2010 e 2016 (PI0406760-6; WO/2004/064845). A Gilead entrou com um recurso administrativo em abril de 2017, que ainda está pendente de decisão. Enquanto isso, o Ministério da Saúde brasileiro concluiu a primeira compra de 3,6 milhões de pílulas de truvada® com exclusividade da Gilead ao custo de USD 0,75 por comprimido, embora existam versões genéricas disponíveis no mercado internacional ao preço de USD 0,13. Se o Brasil tivesse tomado a decisão de comprar a versão genérica do medicamento (uma vez que não há nenhuma patente concedida no país), poderia ter economizado mais de USD 2,2 milhões apenas nessa compra. – Sofosbuvir – medicamento inovador e de alto custo sob “monopólio de facto” O medicamento inovador para o tratamento da hepatite C sofosbuvir (sovaldi®), também comercializado pela Gilead, é outro exemplo de como os pedidos de patentes pendentes geram um monopólio de facto no Brasil. Preliminarmente, identificamos 15 pedidos de patente relacionados ao sofosbuvir no Brasil, o mais antigo datado de 2001. Nenhuma patente foi concedida no país até o momento. Recentemente, em maio de 2018, um dos pedidos foi rejeitado pelo escritório de patentes. Todos os outros pedidos de patente para este composto ainda aguardam análise. No entanto, durante o período de pendência, a Gilead goza de um monopólio de facto sobre as vendas do medicamento, que começaram em 2015. A última compra foi feita a um preço de US$50 por comprimido, o que equivale a US$4.200 para cada tratamento padrão de 12 semanas. Existem versões genéricas que poderiam ser exportadas para o Brasil por uma fração do preço cobrado pela Gilead, cerca de USD185 para o mesmo tratamento de 12 semanas. A economia com a compra da versão genérica chegaria a cerca de US$ 170 milhões por ano. No entanto, devido a um monopólio inexistente baseado apenas em pedidos de patentes pendentes, o medicamento ainda está sendo comprado da Gilead com exclusividade, resultando em potencial desperdício de recursos públic – Darunavir – patente primária concedida e abandonada pela empresa, que usa pedidos de patente secundárias pendentes para bloquear a concorrência com genéricos O primeiro pedido de patente relacionado à base do composto darunavir (PI9607625-9; WO/1996/28465) foi depositado no Brasil em 1996. A patente do composto darunavir foi concedida no Brasil em 2007 e abandonada pela empresa em 2011. No total, 18 pedidos de patentes relacionados ao darunavir foram inicialmente identificados no Brasil. Metade dos 18 pedidos já foram rejeitados ou abandonados/arquivados e os outros 9 ainda estão pendentes de exame pelo INPI. Os pedidos pendentes são considerados secundários, de acordo com um estudo realizado pelo GTPI, um grupo de organizações da sociedade civil brasileira ativo neste tema. O darunavir foi incorporado ao SUS em 2008. Desde então, tem sido comprado com exclusividade da Janssen-Cilag (exceto em 2016), mesmo na ausência de qualquer patente concedida desde 2011, quando a patente foi abandonada pela empresa. Em 2015, os países do Mercosul lançaram um mecanismo de compras conjuntas de medicamentos selecionados de alto custo, que inclui a possibilidade de aquisição de produtores genéricos pré-qualificados pela OMS. O darunavir foi um dos medicamentos incluídos na lista de compras. Dados do Ministério da Saúde mostram que em 2016 o medicamento foi parcialmente comprado da Janssen, ao preço de R$9,60 (US$2,75), e parcialmente da Aurobindo por meio da OPAS/OMS, por R$4,34 (US$1,24). No entanto, em 2017, foi comprado novamente apenas da Janssen sob uma modalidade de compra pública sem concorrência. Em 2017, o preço foi de US$2,42 por comprimido (600mg), enquanto existem versões genéricas pré-qualificadas pela OMS disponíveis no mercado internacional por US$0,90 (600mg). Se a versão genérica fosse comprada, considerando apenas o volume comprado em 2017, o sistema público de saúde brasileiro teria economizado mais de US $ 27,6 milhões. Conclusão Os casos acima mencionados chamam a atenção para uma situação muito maior, que pode potencialmente afetar a aquisição de vários medicamentos pelo sistema público de saúde, especialmente os de maior preço. Portanto, se a economia de recursos públicos estimada acima fosse calculada para todos os medicamentos sob o paradoxo das patentes, a economia potencial seria ainda mais impressionante. Este artigo resume nosso recente artigo, “O paradoxo das patentes no Brasil: implicações para a compra de medicamentos pelo sistema público de saúde”, no qual traçamos a situação inicial para um estudo muito maior e mais abrangente em andamento. Nele, analisaremos uma lista de cerca de 80 medicamentos – que possuem apenas um fornecedor no Brasil – comprados pelo Ministério da Saúde em um período de 10 anos, com o objetivo de entender os principais motivos que levam a essa situação, com foco especial no status patentário no país. Nosso objetivo é destacar uma situação que ainda não é discutida o suficiente e propor recomendações para mudanças nas regulamentações e práticas, a fim de minimizar o impacto do paradoxo das patentes no Brasil. Em conjunto, a mudança do status quo pode potencialmente resultar em economias para o governo de centenas de milhões de dólares, quantias que poderiam ser usadas para melhorar o sistema de saúde pública como um todo, em vez de ser desperdiçado com medicamentos desnecessariamente caros comprados sob exclusividade devido a monopólios indevidos. Marcela Fogaça Vieira possui graduação em Direito (2006), com especialização em Direito de Propriedade Intelectual e Novas Tecnologias da Informação (2010) e possui mestrado em Política e Gestão de Saúde (2015). Ela trabalha com acesso a medicamentos e questões de propriedade intelectual em organizações da sociedade civil no Brasil desde 2005 e atuou como consultora para várias organizações internacionais. Atualmente, é consultora da Fundação Shuttleworth, no projeto accessibsa. Gabriela Costa Chaves é graduada em Farmácia (2002) e possui mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2005 e 2015). Desde janeiro de 2013, trabalha como pesquisadora da equipe do Departamento de Políticas de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (NAF) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – ENSP / Fiocruz. Anteriormente, trabalhou por muitos anos com acesso a medicamentos no Brasil e na América Latina com organizações nacionais e internacionais que trabalham com o assunto, sobre o qual publicou extensivamente. [1] Este artigo resume nosso recente artigo, “O paradoxo das patentes no Brasil: implicações para a compra de medicamentos pelo sistema público de saúde”. Ver integra do documento para referências mencionadas neste artigo. Image Credits: Brazil Ministry of Health Share this:Click to share on Twitter (Opens in new window)Click to share on LinkedIn (Opens in new window)Click to share on Facebook (Opens in new window)Click to email this to a friend (Opens in new window)Click to print (Opens in new window) Related "O Paradoxo Das Patentes No Brasil E Suas Implicações Para O Acesso A Medicamentos" by Intellectual Property Watch is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.